junho 02, 2008

Literatura de Parede

Neste espaço de relevante missão informativa irei discorrer sobre literatura de parede. Desenganem-se os leitores mais versados e cosmopolitas, pois o autor não realizará uma divagação sobre essa praga que assola transversalmente o espaço público nacional (ver Between Facts and Norms, de Jürgen Habermas, MIT Press, 1992), o graffiti. Por muito interesse que suscite o decalque de práticas artísticas urbanas de sociedades pós-industriais e pós-modernas por países pré-desenvolvidos e pré-letrados, os MC's da horta e as beatboxes do arado terão que aguardar que o foco desta ribalta se lhes aflore em momento oportuno. Quando me refiro a literatura de parede, aponto os aforismos redigidos nas paredes e portas de casas de banho públicas. Em qualquer terminal de transportes o leitor encontrará genuínas filigranas de sabedoria, nacaradas no decorrer dos momentos mais atreitos à meditação filosófica. Não será por acaso que Rodin decidiu colocar O pensador naquela posição específica. Paralelamente à divulgação de identificações e contactos para práticas sexuais pouco ortodoxas (o autor não apresenta reservas no que toca a actividades sexuais não ortodoxas, mas apenas não partilha do entusiasmo dos escribas latrinários acerca das afixadas, tanto mais por envolverem dois ou mais elementos do sexo masculino), são editados textos de ordem vária.
 

Sociologia, Filosofia, Antropologia, Psicologia incluem as temáticas preferenciais desses Walter Benjamins de sentina. Algumas gemas finamente lapidadas foram transferidas para as superfícies desses espaços por via da caligrafia (exemplos do melhor cursivo inglês encontram-se expostos nos locais mais inusitados) ou do entalhe. A omnipresença de reflexões penetrantes como "Se tens amor á nação, põe no cu o que tens na mão!" (citação conforme o original, ortografia inclusive) ou "Lá fora és o maior, mas aqui cagas-te todo", ambas de autor incógnito, nos recintos de introspecção estimula grandemente a criatividade alheia. Contudo, o universo discursivo nesses espaços públicos (cá está o Habermas outra vez) é heteróclito e altamente abrangente. Prova da abundância de temáticas e léxicos ocorrente nesse género literário é a interessante compilação de textos realizada por André Vasques e intitulada Um presente de ânus - Antologia da Poesia de Retrete (Garrido Editores, 2002). Essa selecção apresenta uma panorâmica alargada sobre textos encontrados e produzidos em casas de banho, demonstrando que persistem, em paralelo, diversas categorias de concreção (e excreção) nesses refúgios. Sic transit gloria mundi.


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