abril 30, 2009

Óculos de massa

O incauto transeunte que circular pelos pior frequentados locais de Lisboa ou Porto (leia-se ZDB, cinema King, Bacalhoeiro, Contagiarte e similares) depara-se com uma espécie de corpo militarizado, pelo menos a julgar pela indumentária uniformizada, que calcorreia assiduamente essa espacialidade. Personagens totalmente deslocadas da realidade portuguesa, cuja mediocridade nacional nunca irá compreender (facto com o qual o presente autor muito folga), essa amálgama de criaturas altamente intelectuais sofre de um problema que Freud designaria por deficit no princípio de realidade. Prosseguindo o aturado e complexo trabalho realizado pelo Prof. Doutor Renato Carreira acerca dessa sub-espécie humana (ou será espécie sub-humana? O conhecimento do nazismo pelo presente escriba não lhe permite alargar este ponto em particular, por muito que este partilhe algumas preocupações com o Dr. Goebbels, embora não direccionadas para os mesmos grupos), este pequeno texto espera ser uma contribuição ligeiramente original para o estudo de tal fenómeno. Em paralelo, essa fauna circula por toda a Europa, nos seus espaços "alternativos" (não confundir com bares de alterne, pois estes albergam uma frequência bem mais distinta que os previamente citados). A questão que se coloca é: se esta comunidade é tão incompreendida onde quer que esteja, que fazer? Estabelecer uma rede de "campos re-criativos" onde se possam expressar livremente? Seria uma excelente e estalinista ideia, mas este autor crê que o termo "trabalho" não se encontra incluído no léxico godá. Aliás, pode até constar, mas como aquele aspecto específico ao qual não é atribuído qualquer destaque. Internamente, o godá é um artista, não interessando se, como principal actividade, desempenha a função de caixa no Pingo Doce (passe a referência publicitária). Deve ser ressalvado que o presente autor nada mantém contra a actividade de caixa, a qual considera num patamar mais elevado que a de "artista". Uma característica dessa comunidade zoológica consiste na sua tendência para partilhar constantemente a sua opinião acerca de tudo, especialmente sobre assuntos que claramente não domina, associada a um sistema de valores altamente "elitista" e fascizante. Essas criaturas, usualmente associadas à esquerda inútil, transformam-se em verdadeiros Mussolinis do (mau) gosto quando alimentados (em especial em vernissages promovidas na inauguração de exposições, nas quais os "intelectuais" matam a fomeca diária ou exorcizam a quotidiana larica, enfardando à tripa-forra e arrotando comentários altamente estéticos durante esse processo). Música, cinema e artes plásticas são os campos nos quais os genuínos óculos de massa se expressam em toda a sua alarvidade boçal. Felizmente, esse segmento "populacional" apresenta uma enorme vantagem em relação a outros espectros do colectivo: mantém um habitat fixo, o que permite uma imediata localização por parte do investigador sociológico e ao cidadão comum a facilidade de os evitar, não sendo forçado ao recurso a grandes e complexos estratagemas evasivos. No caso de, estimado leitor, se encontrar encurralado por esses bicharocos, a melhor solução consiste em atirar um CD da P.J. Harvey, um filme do Tarantino ou um livro do António Lobo Antunes (sem desprimor para qualquer dos intervenientes, que não têm culpa absolutamente nenhuma de terem sido eleitos por essa área de mercado para seus gurus espirituais) para o meio do colectivo, aproveitando para fugir durante a encarniçada peleja na qual os óculos de massa se envolvem para adquirir o almejado item. Resumindo e concluindo, juntamente ao spray Mace (a aplicar em humanos) e a biscoitos para cão (de forma a evitar encontros imediatos de qualquer grau com os pitbulls do vizinho), o leitor deverá manter próximo de si qualquer um dos itens supra-referidos, como medida preventiva contra eventuais ataques desta sanguinária estirpe.


"Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles será o reino dos céus." (Mateus, 5:3)

abril 25, 2009

Comemorações


Serve o presente texto para reflectir sobre o dia de hoje. Uma reflexão desinteressada focada em aspectos completamente irrelevantes, um pouco na esteira dos que tornaram Pacheco Pereira famoso. No dia de hoje desenrolam-se diversas comemorações do "25 de Abril" (incluo aspas graças ao esforço conjunto de Vasco Pulido Valente e Rui Ramos) e apenas penso numa ideia transmitida pelo interessantíssimo filósofo Roger Scruton no seu ensaio England: An elegy (London: Chatto & Windus, 2000). Scruton, um conservador empedernido, defensor do tweed e da caça à raposa (e, no mesmo caminho, do homoerotismo associado ao sistema das public schools britânicas), defende nesse livro de inspiração quasi-marxista (vide Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London: Verso. 1983) uma ruptura entre celebração e realidade. O autor aponta que o esvaziamento da eficiência real de um evento é compensado pela sua hiper-celebração simbólica. Em termos lacanianos, o Real é traduzido para o Simbólico (com a consequente perda associada a esse processo). Dificilmente esse postulado poderia ser melhor aplicável ao "25 de Abril". Como referia o sociável e jovial José Mário Branco no FMI (Ser solidário, EMI-VC, 1982): "Nós somos um povo de respeitinho muito lindo, saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas". Poderia agora encetar um libelo acusatório a todos esses cabrões, filhos da puta, celerados, chulos, oportunistas e quejandos epítetos que celebram a data de hoje precisamente porque a mesma se tornou inóqua. Não o farei, porque creio que essas pessoas não merecem os meus insultos. Contudo, deixo um elo para um texto que, após o Tríduo Pachecal, representa uma visão in loco do evento que veio a ser semanticamente esvaziado de forma a legitimar uma choldra de oportunistas que se banqueteia com os parcos recursos de um país periférico. Este é para todos os que estiveram realmente envolvidos no processo democratizante e cuja voz já não pode ser ouvida. Quando os comemorarmos, não será de uma forma limitada e politicamente correcta, mas pela radicalidade efectiva das suas propostas.

Luiz Pacheco, O meu 25 de Abril

abril 22, 2009

Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,

linda vista para o mar,

Minho verde, Algarve de cal,

jerico rapando o espinhaço da terra,

surdo e miudinho,

moinho a braços com um vento

testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,

se fosses só o sal, o sol, o sul,

o ladino pardal,

o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,

a desancada varina,

o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,

a muda queixa amendoada

duns olhos pestanítidos,

se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,

o ferrugento cão asmático das praias,

o grilo engaiolado, a grila no lábio,

o calendário na parede, o emblema na lapela,

ó Portugal, se fosses só três sílabas

de plástico, que era mais barato!


*


Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,

rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,

não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,

galo que cante a cores na minha prateleira,

alvura arrendada para o meu devaneio,

bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.


Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós . . .


Alexandre O'Neill, Feira cabisbaixa (Lisboa: Ulisseia, 1965)

abril 07, 2009

Pipi e Caracóis

Menina Bonita Com tranças de trigoSorrindo à janelaVem cantar comigoOs homens fizeramUm acordo finalAcabar com a fomeAcabar com a guerraViver em AmorVou levar-te comigoVou levar-te comigoVou levar-te comigo meu irmãoVou levar-te comigoOlá companheiroDo fato rasgadoNão estendas a mãoFoge do passadoOs homens fizeramUm acordo finalAcabar com a miséria Acabar com a guerraViver em amorVou levar-te comigoVou levar-te comigoVou levar-te comigo meu irmãoVou levar-te comigoOlá avozinhaPoetas pastoresEstudantes ministrosRameiras doutoresOs homens fizeramUm acordo finalAcabar com a fomeAcabar com a guerraViver em amorVou levar-te comigoVou levar-te comigoVou levar-te comigo meu irmãoVou levar-te comigo