setembro 20, 2008

Poema dum funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos

dispersou-me os amigos

tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo

e as casas engolem-nos

sumimo-nos

estou num quarto só num quarto só

com os sonhos trocados

com toda a vida às avessas a arder num quarto só

  

Sou um funcionário apagado

um funcionário triste

a minha alma não acompanha a minha mão

Débito e Crédito Débito e Crédito

a minha alma não dança com os números

tento escondê-la envergonhado

o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do  

                                                         quintal em frente

e debitou-me na minha conta de empregado

Sou um funcionário cansado dum dia exemplar

Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu

                                                                               dever?

Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu

                                                                           cansaço?

    

Soletro velhas palavras generosas

Flor rapariga amigo menino

irmão beijo namorada

mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho

palavras soterradas na prisão da minha vida

isto todas as noites do mundo uma noite só comprida

num quarto só

António Ramos-Rosa, Viagem através duma nebulosa, Lisboa, Ática, 1960


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