julho 25, 2008

Carruagem 22, Lugar 82

Viajar de transportes públicos comporta dois aspectos essenciais: masoquismo e paciência. Todavia, é nos transportes que se desenrolam as situações mais surreais neste torrão a que chamaram Portugal. Encontram-se obviamente excluídas desta afirmação a Assembleia da República e as Assembleias Gerais do Sport Lisboa e Benfica. Seria estúpido não referir esse ritual de socialização (a la Erving Goffman de Interaction ritual: Essays on face–to–face behavior, Anchor Books, 1967) neste espaço que se espera de pura instrução à populaça ignara (como os escritos da forja de Vasco Pulido Valente, autor a quem muito prezamos, apesar da brandura de sua escrita). O autor entra na carruagem e repara que lhe reservaram um lugar no espaço destinado a quatro pessoas (duas a duas e frente-a-frente). Nos três restantes assentos encontrava-se um grupo muito particular. O homem de meia-idade envergava uma camisa aos quadrados e apresentou uma tatuagem a tinta de esferográfica, possivelmente realizada numa das suas estadias em Angola, onde se entreteve a massacrar pretos. A velhinha, obviamente senil, passou todo o trajecto a suspeitar que havia sido esportulada pela funcionária do lar em que se encontrava (e, a nosso ver, muito bem) depositada, visto ter pago 75 euros no cabeleireiro para obter um look similar a uma lontra com permanente. A mulher de meia idade, companheira do senhor que bebericava uma lata de Sagres no comboio (às 9:30 da manhã, claro está) era uma personagem "esculpida em toucinho", expressão carinhosamente gamada a Fialho d'Almeida (Pasquinadas: jornal dum vagabundo, Civilização, 1890). Quando o autor se aproximou, denotou um fedor fétido no grupo, que logo atribuiu à velhinha. Claramente, a senhora estava morta e decomposta e ninguém a avisara previamente do facto. Que falta de chá, esquecer-se de notificar uma pessoa da própria morte. Resumindo, um verdadeiro calvário de três horas e sem promessa de ressurreição. Um momento ficará para sempre retido na memória do escriba destas linhas: o homem perguntou à velhinha se tinha trazido e a velhinha respondeu afirmativamente. Depois, a velhinha sacou da carteira (e friso as palavras "velhinha" e "carteira") dois DVD's pornográficos feitos em Portugal. Ainda embrulhados no celofane primordial, espécie de hímen na sociedade contemporânea, aura de pureza mesmo quando, claramente, nenhum dos intervenientes no filme era virgem. Ao assistir a essa cena, a mulher de meia-idade, ruge das profundezas de pregas nos foles do seu acordeão carnal a expressão: "-Mas que tara!". Aparte do semblante carregado de orgulho do cavalheiro, notoriamente cinéfilo e apreciador de espectáculos de elevado gabarito, as reacções foram parcas. É pena, pois alguns cientistas estariam concerteza interessados em estudar as práticas reprodutivas do casal de meia-idade. Qualquer coisa entre um tsunami de banha abatendo-se gelatinosamente sobre um fuinha subnutrido. É por essas e por outras que o autor defende a obrigatoriedade da lipossucção em certos casos, desde que o remanescente não seja enviado para uma fábrica de torresmos.

Sem comentários: