"- Era um descafeínado com adoçante, ó fachavor!". Constatei que se encontrava à minha beira um verdadeiro Gil Eanes de subúrbio, intrépido e extemporâneo clone do navegador de regiões indómitas que dobrou o Bojador em quatro, sobraçou-o e veio entregá-lo a D. Duarte. Numa altura de amplificada comercialização de produtos esbulhados dos seus ingredientes nefastos (ver, por exemplo, Slavoj Zizék, A Cup of Decaf Reality, aqui) e de promoção de estilos saudáveis de vida, emerge um contrasenso. Viver mais e melhor implica uma renúncia à própria vida? Pelos vistos, na opinião ajuizada pelo Gil Eanes de balcão, a resposta é efectivamente afirmativa. O autor confidencia a anutrição da mínima fímbria de respeito por esse tipo de indivíduos cujo núcleo das práticas consumistas se foca em objectos virtuais amputados da sua essência. Dados os horizontes expandidos no que toca à selecção e escolha constituintes da sociedade actual, encontram-se pessoas cujas preferências gustativas recaem sobre o descafeínado em detrimento do café. Que mais poderá estar reservado para o futuro: ingerir vinho sem álcool, melancias sem grainhas, um Benfica que sabe jogar à bola, um Jorge Lima Barreto virtuoso do teclado? O Apocalipse manifesta-se ao virar da esquina (e numa esquina do Cais do Sodré, claro está). Um aspecto inquietante da correnteza dessas práticas é o alastramento da descafeinização às diversas esferas da vida humana e consequente colonização da vida privada pelos mitos da salubridade (Baudrillard, Jean, Pour une critique de l’économie politique du signe, Paris: Gallimard, 1972). Daí o autor defender um boicote internacional ao descafeínado, aos adoçantes e à cerveja sem álcool. Antes que seja tarde demais. Termino com a inclusão de um sábio provérbio galego: "para pescar o rodaballo hai que mollar o carallo".
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